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Transformismo: duas vidas no mesmo corpo

  • Foto do escritor: Sofia Andrade
    Sofia Andrade
  • 13 de jun. de 2021
  • 5 min de leitura

Atualizado: 14 de jun. de 2021

Roberto Eduardo é transformista, no Porto, há mais de 30 anos. “Amo a Roberta de paixão, mas também gosto do Roberto”, conta ao Sui Generis, no interior do bar Invictus, que se mantém encerrado no coração da noite portuense.

Um fado de Mariza ecoa pelo corredor da galeria comercial que desemboca na Rua da Conceição, no coração da noite do Porto, até que subitamente se cala. Do interior do Invictus, o bar-discoteca que se encontra temporariamente encerrado devido à pandemia de covid-19, sai Roberto Eduardo, o proprietário, que faz subir o portão que dá acesso à galeria. Na rua, pelas 23 horas, ainda se vê o movimento daqueles que abandonam os bares que, por lei, encerraram meia hora antes. “Só nós, discotecas, é que continuamos fechados”, lamenta, enquanto se encaminha para o interior do estabelecimento que abriu, propositadamente, para receber o Sui Generis.



Sofia Andrade


O Invictus, conhecido pelos shows de transformismo que decorrem, semanalmente, às sextas e sábados pelas duas da manhã, é a casa das artistas Roberta Kinsky, Nicole Kinsky, Katy Wandoly, Diane Star e Nany Petrova; hoje, é Roberta quem faz as honras. “Foi aqui, precisamente, que comecei a fazer espectáculos de transformismo, em 1983 ou 1984”, conta ao Sui Generis. “Esta casa já existia, antes de eu a ocupar, em Dezembro de 2015. Foi o primeiro bar gay da cidade do Porto e chamava-se Kilt Club.”


Roberto caminha pelo bar, vazio de gente e em processo de renovação, e dirige-se para a escadaria que conduz até ao camarim, no andar superior. “Dantes isto não era assim tão grande. O nosso camarim era na casa de banho, que era minúscula. Mal cabiam três pessoas lá dentro, era complicado.” Uma cortina de veludo carmim separa o espaço do bar dos bastidores dos espectáculos. É num outro universo, cheio de cor, brilho, plumas, sapatos de salto, vestidos de lantejoulas e muitos espelhos, que Roberto prepara a sua transformação. O seu kit de maquilhagem é imenso, assim como os adereços de que dispõe: dezenas de peças de bijutaria, de perucas, vestidos, sapatos, malas. Em frente ao espelho, Roberto aplica as primeiras camadas de base.



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A Roberta Kinsky, que começou por se chamar Vanessa, nasce por acaso, mas não ao acaso. Não tivesse participado no concurso de misses numa boate na rua de Santa Catarina, no início dos anos 80, e talvez a personagem nunca tivesse existido. Ou não. “Quando eu era criança, toda a gente me confundia com uma menina”, recorda. “A minha mãe não achava graça à situação, porque eu era um rapaz.” Ainda vivia, nessa altura, no Rio de Janeiro, a cidade onde nasceu. “Isso aconteceu até eu ter 15 ou 16 anos porque tive barba muito tarde. Eu era, de facto, meio andrógino, mas não me importava que me confundissem – muito pelo contrário. Ria-me e não corrigia ninguém, nunca disse ‘eu sou um rapaz’.”


No Rio de Janeiro, Roberto estava habituado, desde miúdo, a conviver com pessoas de todas as orientações sexuais e identidades de género. “A minha madrinha era lésbica e eu aprendi, desde cedo, a respeitar toda a gente.” No seu bairro, recorda, havia transexuais, transformistas, marchas LGBT. “Havia também uma artista de televisão no meu prédio que era completamente louca e que me enchia de plumas, perucas, chapéus, tudo. Isso nunca me fez confusão.” Talvez tenha nascido aí o gosto pelo transformismo, cogita, enquanto coloca cola sobre as longas pestanas falsas que irá aplicar sobre as suas.


No Porto, a cidade onde chegou por volta dos 17 anos, encontrou uma sociedade profundamente diferente daquela que conhecia. “As pessoas cá estranhavam as minhas roupas claras ou coloridas”, descreve. “Era tudo muito castanho, cinzento…” Na escola, a sua integração também não foi fácil. “Não havia muitos brasileiros aqui. E o Rio de Janeiro era muito mais avançado, nessa época, em termos de mentalidades, não me identificava com pessoas da minha idade.” O facto de ser homossexual também condicionava a sua vida social. “Na praia, tive aqueles namoricos para não parecer mal. As meninas atiravam-se a mim e eu… pronto. Mas aquilo durava dois dias e depois acabava. Eu não tinha interesse.”


Roberto nunca se sentiu atraído por mulheres. Um dia, um colega de escola da sua irmã mais velha perguntou-lhe, directamente, se gostava de rapazes. “É que eu gosto e tenho a certeza que tu gostas também”, disse-lhe. “Se não vieres comigo a um sítio vou contar à tua irmã.” Foi assim, “meio chantageado”, que Roberto entrou no circuito gay no Porto. “Nunca tinha visto dois homens de bigode a beijarem-se, nem imaginava como seria.” Esse foi um momento decisivo para Roberto, porque encontrou, finalmente, um círculo onde sentia que “encaixava” na perfeição.



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Foi na cena gay portuense que conheceu Nany Petrova, que é, ainda hoje, “prata da casa” do Invictus. “Os grupos de transformismo eram muito fechados quando eu comecei”, explica. “Era difícil entrar alguém novo.” Nany tinha acabado de desfazer o seu grupo de artistas transformistas e convidou Roberto a integrar um novo. “A partir daí, comecei a ser conhecido pela 'brasileirinha', a' brasileira'. Era o único.”


Roberto Eduardo e Roberta Kinsky habitam, de forma harmoniosa, o mesmo corpo. “Nunca me senti transexual”, refere. “Gosto do meu corpo, revejo-me nele.” Mas confessa que já sentiu os olhares e ouviu as críticas de quem não gosta dessa coabitação. “No meio gay – acho que até mais do que no meio hetero – há quem não goste de transformistas por achar que somos uma espécie à parte. Acham que não devíamos existir porque somos homens, mas vestimo-nos de mulher. Eu não vejo qual seja o problema. Entrar de Roberto e sair de Roberta é algo meu, é como encarnar uma personagem.” Nesse momento, Roberta, ainda nas roupas de Roberto, sai do camarim e procura, numa mala, o vestido que irá usar durante a performance que se seguirá. Coloca o vestido junto ao corpo, diante de um espelho, e dirige-se novamente para o interior.


Roberto vive numa espécie de “dois em um”, diz, entre risadas. Quando começa a sua transformação, o seu “alter-ego aparece”. “Deixa de estar o Roberto, que fica num cantinho, quieto, e a Roberta começa a aparecer.” Os dois têm personalidades completamente diferentes, garante. “Andam, falam, riem de forma diferente. A Roberta é mais extrovertida, provocadora, gosta de ser o centro das atenções. O Roberto é mais sossegado, gosta de passar despercebido.” Acontece frequentemente que quem o conhece do Invictus, das suas performances na pele de Roberta, se lhe dirija no feminino. “A Roberta tem uma presença muito mais forte que o Roberto e as pessoas fixam-na mais. É normal que, mesmo vestido de homem, haja pessoas que me tratem por Roberta e eu não tenho quaisquer problemas com isso.” “Para mim, não existe regra”, afirma, ajustando a posição da sua peruca, diante do espelho, enquanto termina de fumar um cigarro.


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Na opinião de Roberto, ser um transformista é ser um artista. “As pessoas deviam olhar o transformismo como uma forma de teatro, talvez a mais esquecida de todas.” Porque existe um lado performativo, de espectáculo, que lhe está associado. Por isso, “nem todos conseguem ser bons transformistas”, refere. “Existe algo indizível na forma como um bom transformista age, como se move, uma sensibilidade especial para a música, para a dança.” Os espectáculos de Roberta Kinsky são musicais. “Faço playback, danço”, diz.


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Da porta do camarim, sai Roberta finalmente pronta para mais uma performance. Esta nunca estreou, aguarda pelo fim da pandemia. Nervosa, ela desce as escadas, mas quando chega ao palco ela só transpira confiança. As guitarras portuguesas choram e Roberta “canta” com a voz de Mariza uma canção que remete para um amor secreto, escondido, subterrâneo. Tão subterrâneo, quiça, como já foi outrora a sua arte. “Às vezes, sinto que as pessoas não nos respeitam. Acho que deveriam lembrar-se que, acima de tudo, sentimos e sofremos da mesma forma que elas. Ainda é necessário abrir horizontes, em Portugal. É essencial.”

 
 
 

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