Não-binárie: quebrar os limites dos papeis de género. Entrevista
- Carolina Martins
- 15 de jun. de 2021
- 9 min de leitura
Joni e Blue são duas pessoas não-binárias. Partilham, além dos olhares curiosos das pessoas, pelas quais passam na rua, conflitos e processos de descoberta semelhantes.
Ser não-binário envolve, geralmente, a não conformidade com o sentimento físico e emocional, o aspeto moral e normativo dos papeis de género feminino ou masculino, impostos pela sociedade - é habitual ouvir-se falar destas regras como construções sociais, algo imposto pela sociedade e que limita o comportamento, a perceção e o à vontade da própria pessoa, sobre si mesma, mas as experiências de Joni e Blue são um exemplo da rutura.
Sui: Se tivesses que dar uma definição do que é ser não-binário, para ti, o que dirias?
Joni: Para mim ser não binário é não me identificar nem com o género masculino, nem com o feminino.
José Silva Brás/ Sui Generis
Sui: Qual é a tua identidade de género?
Blue: Dentro do espetro não-binárie, eu sou uma pessoa género fluído. Eu prefiro pronomes neutros e linguagem neutra, no geral.
Mas, como muita gente ainda tem dificuldade de se adaptar com isso, ainda prefiro pronomes femininos aos masculinos.
Sui: Como defines ser não-binárie?
Blue: Bom, eu acho que começou muito errado tudo isso, esse mundo tudo. Aliás, eu acho que no início de tudo mesmo até estava indo num caminho bom, até que teve ali uma pedra no caminho.
Estes dias eu estava lendo e descobri que quando os colonizadores chegaram aos Estados Unidos para invadir e matar todo o mundo, todas as tribos que existiam lá tinham, assim, no mínimo dos mínimos, três géneros. Para mais. As pessoas antes dessa cultura e desse sistema social em que a gente vive hoje, já tinham consciência de que não eram só dois géneros que existiam. Foi o sistema social atual que chegou lá e disse que isso estava errado.
Tendo esse problema em mente, a conceção de que tudo o que era não-binárie foi apagado e agora tudo o que existe vai ser binário. Toda a nossa vida foi baseada em: sim ou não, preto ou branco, certo ou errado, homem ou mulher. Então, a não-binariedade vai de encontro às referências. Para tu ser não alguma coisa, tem de ser alguma coisa antes para tu negar. Considerando que existe a binariedade, o não-binárie é negar isso como algo universal. Eu acho que a bandeira LGBTQIA+, eu acho que seria perfeita para pessoas não-bináries, é exatamente o que mostra que o mundo não é preto e branco, na verdade, tem muitas cores ali no meio.
Sui: Quais são as principais dificuldades que enfrentas no teu dia-a-dia, por causa da tua identidade de género?
Blue: Eu acho que posso começar com o facto de que não importa o jeito como as pessoas me percebem - se for como homem, vão-me discriminar porque acham que sou um homem afeminado gay, se me veem como mulher, me assediam e fazem tudo o que fazem com as mulheres, se me veem como pessoa trans, me fetichizam.
Eu acho que a maior dificuldade é passar por todas as opressões, ao mesmo tempo. -Blue
Sui: E a nível social?
Blue: Bom, partindo do princípio que, por exemplo, tem uma lei que exige que os estabelecimentos tenham uma casa de banho para pessoas de géneros não-bináries, socialmente já seria mais fácil de entender para as pessoas que, normalmente, têm alguma dificuldade em perceber o que é. "Ah, se tem um lugar com uma plaquinha diferente é porque realmente tem pessoas que se identificam com essa plaquinha". Porque as pessoas precisam sempre encaixar tudo em algum lugar - acho que isso facilitaria bastante.
Como a gente vive num mundo em que tudo tem de ser binário e eu acabo por cair sempre nesse assunto da referência porque eu acho que é fundamental, as pessoas podem até ser muito transfóbicas e muito opressoras em relação a pessoas trans binárias, mas acho que têm um nível de entendimento um pouco maior - conseguem entender que alguém possa ter nascido, entre muitas aspas, no corpo errado, mas quando aparecem pessoas não-bináries ficam só tipo: “Como assim? Isso é real? Não é só confusão?”.
Aspetos básicos como usar o quarto banho público podem transtornar Blue.
Em alguns casos, como é referido na reportagem sobre as vivências transgénero, as pessoas não-binárias têm receio de serem descriminadas ou despertarem episódios de violência física.
Sui: A nível legal, o que é que tu achas que poderia ser feito para melhorar a vivência das pessoas não-bináries?
Blue: Primeiro eu acho que seria importante que isso fosse considerado um assunto válido, uma coisa séria. Depois, a partir desse princípio, da validade das pessoas reconhecerem os seus géneros e se sentirem confortáveis, abrindo a possibilidade de apresentarem documentos e coisas assim. Uma coisa que me incomoda bastante é a questão de usar casas de banho públicas porque, geralmente, não tem opção. Onde quer que eu vá, ninguém vai gostar da minha presença lá.
Talvez fosse importante existir uma terceira casa de banho para pessoas que não se sentem confortáveis em nenhuma das outras.
Era importante também existirem mais oportunidades de trabalho, inclusão em projetos sociais, dar voz para pessoas não-bináries em universidades, em centros de discussão, na política…
Existem ainda aspetos, não só pessoais, mas sociais a serem repensados. Para Blue e Joni, as questões laborais sublinham uma dimensão mal regulada, nacionalmente - se não é pelo preconceito que se faz sentir ainda (mesmo depois dos projetos de lei que o proíbem terem sido aprovados) é pela infiltração de aspetos mais rígidos da normatividade numa área que, mesmo assim, se sustenta numa ideia de flexibilidade e diferença, como é a moda.
Sui: A nível profissional, no mundo da moda, a tua identidade de género é uma questão que já te trouxe problemas?
Blue: Eu comecei a carreira da moda aqui em Portugal mesmo. Fiz alguns cursos no Brasil, mas não cheguei a fazer nada lá.
Aqui, uma coisa que me incomoda muito, dentro do mundo da moda, é que tem dois extremos - ter que, obrigatoriamente, forçar as pessoas a seguir padrões da indústria da moda que, geralmente, são padrões impossíveis de serem alcançados (e plásticos) e tem o outro lado da moeda, que é essa ideia de que a moda tem o poder de mostrar para as pessoas o que é que é o normal, o que é que é bonito, o que é aceitável. Então, eu acho que a gente está caminhando muito devagar para realmente fazer a diferença nesse sentido.
Para mim, particularmente, não é tão difícil, eu já arranjei alguns trabalhos em que eu não precisei fingir nada e correu bem. Já fiz uma coleção inteira com trabalhos sem género e eu achei isso incrível. Já fiz o papel de pessoa trans num comercial de carro e achei isso importante.
Por outro lado, ainda tem coisas que eu acho muito negativas, como a binariedade.
No catálogo da minha agência, por exemplo, tem uma secção feminina e uma secção masculina e eles me colocaram na secção masculina, o que eu acho errado porque, bom, eu não sou uma pessoa masculina. Assim como desfiles, eventos importantes de moda, sempre tem a parte dos homens e a parte das mulheres, ainda não é muito inclusivo nesse sentido.
Sui: Quais são as principais dificuldades que enfrentas, em Portugal, por causa da tua identidade de género?
Joni: Os principais problemas que eu encaro, no dia-a-dia, são a ignorância em relação à minha identidade de género e com outras. No caso da identidade não-binária, é que veem só o feminino e o masculino, não veem o que há lá no meio ou o que não há. E o que várias pessoas sentem em relação a isso e como isso as afeta no dia-a-dia e nas suas relações.
Sui: Achas que no futuro, a nível profissional, a tua identidade de género poderá trazer-te problemas?
Joni: Sim, sem dúvida alguma. Ainda há pouco tempo estive à procura de um part-time e não posso utilizar o nome pelo qual quer ser tratado. Tenho de esconder quem sou, até porque nem a nível legal há reconhecimento da minha identidade de género.
Aspetos como a alteração da linguagem para se adaptar às novas realidades ou a simples readaptação do tratamento social para se referir corretamente à pessoa não-binária, como são o uso dos pronomes corretos, por exemplo, são pontos que ambes referem.
Sui: O que é que pode ser feito para melhorar a vivência das pessoas não-binárias?
Joni: O reconhecimento dessas pessoas como parte da população. Especialmente, desde pequenas, na escola, em vários sítios. Quanto mais pequenas, melhor.
Por exemplo, começar na escola. Informarem as crianças que existem esse tipo de identidade e outras, que existem pessoas assim, que não tem de haver nenhum tipo de exclusão. O que são pronomes e que isso tudo é importante!
Sui: Quanto à linguagem neutra e especificamente na língua portuguesa. O que pensas das propostas apresentadas até agora?
Joni: Em relação aos pronomes, eu acho que o que seria preferencial era cada um definir os seus, como já acontece hoje em dia. Mas para isso também tem de haver respeito em relação aos pronomes que se usam. Na língua portuguesa é mesmo muito difícil ter pronomes neutros e para isso é mesmo importante uma colaboração por parte quer da pessoa em questão, a pessoa não-binária e das pessoas que a circundam.
José Silva Brás/ Sui Generis
Sui: Há dois conceitos que as pessoas ainda tendem a confundir: identidade de género e expressão de género. Como é que os distinguirias?
Blue: Para mim foi um pouco difícil também para eu entender isso. Para eu me entender como pessoa, como todo o mundo que é trans passa por um momento de "não sei". Não sei se sou uma pessoa de orientação sexual diferente do que a sociedade espera de mim, ou se é algo além disso. Nos meus 14 anos, eu pensava que eu era apenas um menino gay afeminado que fosse talvez ser cabeleireiro, como vários que eu conhecia. E depois eu fui evoluindo nessa ideia, que afinal eu não era gay, talvez eu fosse bi e isso foi evoluindo até ao ponto que eu percebi que, mesmo quando já tinha aceitado a minha sexualidade, que não era socialmente padronizada, tinha alguma coisa faltando. Ou seja, mesmo que eu me expressasse do jeito que eu me sentia mais confortável, me vestisse ou falasse e tivesse trejeitos, ainda assim as pessoas me viam como um homem ou se referiam a mim mesme como um homem, ou no masculino - me dava uma sensação estranha, de que isso não estava certo.
E aí, eu fui pesquisar mais sobre identidade de género e, aí, eu percebi que não é pelo fato de eu me vestir assim, entre aspas diferente, que eu necessariamente sou uma pessoa de um género que não me foi atribuído à nascença. É mais um sentido de como eu quero que as pessoas me vejam, como eu quero me ver na sociedade, qual é a personagem da história que eu quero escolher para mim. Eu acho que isso foi bem marcante.
É um jeito fácil da pessoa entender, pensa numa história e qual personagem você quer ser: quer ser a princesa, a guerreira, o príncipe ou o vilão ou sei lá, não tem, entendeu? Por isso foi um pouco difícil, mas quando eu entendi que a gente pode criar histórias novas, com personagens novas que são não-bináries para nos representar. Eu percebi ok, então eu estou aqui para isso. Para dar representatividade para quem vier depois de mim.
O preconceito dentro da própria comunidade é explícito.
Sui: Dentro da comunidade LGBTQIA+ ainda há preconceito com pessoas não-binárias?
Joni: Sim, dentro da própria comunidade ainda há preconceito. Ainda há questões sobre pronomes, ainda não se percebe o que é que é. Eu já conheci imensas pessoas da comunidade que ainda acham que pronomes é uma moda, do Twitter ou do Instagram, e que é uma coisa que agora toda a gente faz, toda a gente gosta de ter os pronomes na bio. Não entendem que é a nossa forma de meter um rótulo e muitas pessoas acham que ter um rótulo é mau, mas não. Ter um rótulo é bom porque simplesmente é uma forma de mostrarmos a nossa percepção, a percepção que temos de nós mesmos, daquilo que somos.
É uma forma de não estarmos tão perdidos em relação ao que é que nós somos. - Blue
Sui: Há dois conceitos que as pessoas ainda tendem a confundir: identidade de género e expressão de género. Como é que os distinguirias?
Blue: Para mim foi um pouco difícil também para eu entender isso. Para eu me entender como pessoa, como todo o mundo que é trans passa por um momento de "não sei". Não sei se sou uma pessoa de orientação sexual diferente do que a sociedade espera de mim, ou se é algo além disso. Nos meus 14 anos, eu pensava que eu era apenas um menino gay afeminado que fosse talvez ser cabeleireiro, como vários que eu conhecia. E depois eu fui evoluindo nessa ideia, que afinal eu não era gay, talvez eu fosse bi e isso foi evoluindo até ao ponto que eu percebi que, mesmo quando já tinha aceitado a minha sexualidade, que não era socialmente padronizada, tinha alguma coisa faltando. Ou seja, mesmo que eu me expressasse do jeito que eu me sentia mais confortável, me vestisse ou falasse e tivesse trejeitos, ainda assim as pessoas me viam como um homem ou se referiam a mim mesme como um homem, ou no masculino - me dava uma sensação estranha, de que isso não estava certo.
E aí, eu fui pesquisar mais sobre identidade de género e, aí, eu percebi que não é pelo fato de eu me vestir assim, entre aspas diferente, que eu necessariamente sou uma pessoa de um género que não me foi atribuído à nascença. É mais um sentido de como eu quero que as pessoas me vejam, como eu quero me ver na sociedade, qual é a personagem da história que eu quero escolher para mim. Eu acho que isso foi bem marcante.
É um jeito fácil da pessoa entender, pensa numa história e qual personagem você quer ser: quer ser a princesa, a guerreira, o príncipe ou o vilão ou sei lá, não tem, entendeu? Por isso foi um pouco difícil, mas quando eu entendi que a gente pode criar histórias novas, com personagens novas que são não-bináries para nos representar. Eu percebi ok, então eu estou aqui para isso. Para dar representatividade para quem vier depois de mim.
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