"Estamos no auge da agenda trans". Reportagem
- Carolina Martins e José Silva Brás
- 13 de jun. de 2021
- 8 min de leitura
Atualizado: 14 de jun. de 2021

Angela Hsieh/NPR
Em 2018, a lei portuguesa passa a consagrar o direito à autodeterminação de género e à protecção de caraterísticas sexuais de qualquer pessoa.
Lêdo, diz que se sente feliz em viver num país “com uma das legislações mais progressistas a nível mundial”. No entanto, nem tudo é um sonho neste jardim plantado à beira-mar.
Tiago ainda denuncia a existência de “um processo burocrático penoso”, quer no acesso aos cuidados de saúde, quer na alteração do nome e o marcador de sexo no documento legal de identificação. Para o jovem de 29 anos, todas as mudanças necessárias “no cartão bancário, no contrato do telemóvel, na certidão de nascimento e tudo e mais alguma que se possa imaginar” constitui uma “correria extenuante” dada a obrigação de explicar a todos os intervenientes que a alteração advém do facto de ser uma pessoa trans, lidando por vezes com situações de discriminação por parte dos funcionários.
Há outros impasses no acesso a serviços, dada a falta de preparação dos mesmos para as necessidades da população transgénero, nomeadamente pelo apagamento da sua identidade trans como salienta Xavier Simão.
Apesar de algum progresso, Bernardo Lopes considera que o panorama não é assim tão risonho: “Uma simples pesquisa permite-nos perceber que não existe proteção legal para pessoas trans, em praticamente todos os setores”. Na experiência do jovem de 19 anos, este é um fator que atira a comunidade trans para uma elevada fragilidade e precariedade, “na saúde, no emprego e na vida”, até porque mesmo quando é feita uma denúncia de discriminação, “simplesmente não é levada a sério e acaba por ser ignorada”.
O avanço legal nem sempre anda de mãos dadas com o avanço social, dado que lei tende a preceder a mudança de mentalidades face a um determinado assunto.
Não obstante, sentem-se os suaves ventos de mudança a levantar, nas palavras de Tiago: “Estamos no auge da agenda trans”, dada a maior proliferação de conteúdo sobre identidade de género nos media que, para o músico, contribuem para uma maior aceitação e compreensão por parte da população geral. Para Bernardo, o combate ao preconceito faz-se nesta frente: é através da informação que se podem transformar realidades e os meios de comunicação são o veículo mais poderoso.
O não reconhecimento da sua identidade é outra micro-agressão que muitas pessoas trans enfrentam, este fenómeno é mais conhecido como misgendering. Xavier conta que esta é a principal dificuldade que enfrenta no seu dia-a-dia, tendo graves consequências para a sua saúde mental, dado que estes episódios acabam por contribuir para a disforia social e em casos extremos, levar a um isolamento das pessoas trans por não verem o seu género reconhecido diariamente.
O corte de fundo com o sistema capitalista é a única verdadeira solução, na óptica de Xavier Simão, “para obter a verdadeira emancipação de todas as pessoas oprimida, incluindo as pessoas trans”. No entanto, o jovem de 24 anos apresenta outras medidas que podem ser tomadas a curto-prazo nomeadamente, a aposta na disciplina de Educação Sexual e uma que contenha um currículo verdadeiramente inclusivo, referindo “as questões de orientação sexual e identidade de género” e também a formação de docentes sobre estes tópicos, concedendo-lhes uma “maior sensibilidade para este tipo de casos, porque certamente também os terão na sua sala de aula”.
A esfera social representa, para muitas pessoas trans, o maior campo de batalha das suas vidas. Como explica Tiago, “em Portugal as pessoas ainda vivem no armário” e que apesar de quem os rodeia terem conhecimento da situação, é um assunto tabu, que todos escolhem simplesmente não referir. O desconforto, a vergonha e o medo de retaliação e por vezes, violência, leva os jovens trans a esconderem a sua identidade, no entanto, Tiago não tem dúvidas.
O contexto laboral português
Guilherme, tem 19 anos, e desde o início da primavera que procura o primeiro emprego.
Se para uma pessoa cisgénero, a maior inquietação é a pouca experiência profissional, para o jovem de Penafiel a possibilidade de ser discriminado é o que mais o preocupa, especialmente, depois de alterar o cartão de cidadão.
Por medo de represálias, só um pequeno grupo de pessoas à sua volta é que sabem à cerca da sua identidade – os pais, o namorado e um grupo de amigos e colegas de faculdade, para quem a reeducação foi “tranquila”, refere.
Segundo o estudo ADIM – Avançar na Gestão da Diversidade LGBT nos Setores Públicos e Privado, realizado na Península Ibérica, 36% de um total de 1147 inquiridos que se identificavam como parte da comunidade LGBTQIA+, referiram sentir-se assediados de alguma forma, no local de trabalho.
Por já terem sido alvo de piadas homofóbicas ou de rumores sobre a sua orientação sexual ou identidade de género, 15% destes inquiridos já evitaram espaços ou eventos corporativos, o que a longo prazo afeta o seu conforto e, consequentemente, a sua produtividade.
fonte: ADIM – Avançar na Gestão da Diversidade LGBT nos Setores Públicos e Privado
Para Xavier, a preferência do empregador pela manutenção da imagem da sua empresa é óbvia, geralmente... no caso de Xavier, a questão é mais específica.
Enquanto pessoa transmasculina, no início da sua transição médica, e por reconhecer em si muitas características femininas para se “considerar dentro do binarismo”, Xavier reconhece a inevitabilidade da preferência do empregador por uma pessoa cisgénero, ao invés dele – o empregador evita o processo, às vezes complicado, de “desconstruir-se a si mesmo e ao seu local de trabalho”, sublinha.
O Pedro e o Tiago são casos de exceção. Apesar de ter sido socializado, durante muito tempo, como mulher o que, derradeiramente, o marcou na sua forma de estar agora, Pedro confessa que nunca sofreu de discriminação no local de trabalho devido à sua identidade de género, mas por causa da orientação sexual – “muitas vezes percebem-me como homem gay e aí já entra um bocado de discriminação; não por ser trans, mas por ser LGBT”.
Para o músico, ainda que se considere “particularmente feminino” o seu ambiente de trabalho é bastante favorável à sua adaptação – “a verdade é que no meu trabalho, nas minhas relações pessoas e na minha família e tudo isso não tenho nada para me queixar” reitera.
“Sinto-me apoiado legalmente, o que não é de todo o caso para as pessoas não-binárias.” -Tiago
As questões de identidade de género ganharam atenção nacional, no início do século passado, em 2011, com a aprovação do projeto de lei 75/2011, de 15 de março, mas a alteração do código de trabalho, para acrescentar a categoria identidade de género só foi aprovado 4 anos depois, a 15 de janeiro de 2015, na tentativa de regulamentar a não discriminação das pessoas transexuais no contexto laboral.

Ainda que a lei 28/2013 obrigue legalmente ao tratamento equitativo no contexto laboral, para Guadalupe é óbvia a não aplicação prática da legislação, mesmo que pessoalmente se ache passável o suficiente por mulher cisgénero para não se preocupar com casos de discriminação direta.
Apesar de uma visão mais otimista do ponto de vista legislativo, o psicólogo Luís Pinheiro reconhece a existência de vários casos velados de discriminação no acesso ao trabalho e, nos casos em que a pessoa transexual é contratada, o isolamento (voluntário ou involuntário) passa a ocupar as estatísticas.
De facto, no relatório lançado pela ILGA Portugal, é referida a importância de um sistema integrado que combata a exclusão e que preveja a valorização e incentive as entidades patronais a adotarem políticas inclusivas.
De acordo com o estudo ADIM, 54% dos inquiridos LGBTQIA+ apontam questões de privacidade quanto à não partilha da vida pessoal nos locais de trabalho, os restantes mencionam o receio em partilhar pormenores da própria vida, com medo de desencadear algum resultado negativo que afete direta ou indiretamente a sua estabilidade profissional e financeira – rumores, mudança na sua valorização profissional, medo de rejeição e até medo de perder o trabalho, como foi apontado por 7% da amostra.
Ressalva, ainda, os casos crescentes de isolamento e má adaptação ao local de trabalho com consequências na renúncia de importantes direitos laborais como são as licenças de casamento, ausências por falecimento, baixa médica por saúde ou acidento do cônjuge.
As questões da Identidade de género
As questões com a autoimagem e a forma como as pessoas LGBTQIA+ são percecionados socialmente, especialmente as pessoas transgénero que, não raramente, passam por situações de transição sexual, são mediadores importantes do conforto físico e mental lembra Rita Andrade, psicóloga do centro GIS, no Porto.
O termo disforia de género, por exemplo, é recorrente nos testemunhos destas pessoas, quer pelas razões clínicas que o desconforto com o seu corpo lhes provoca, mas também pela fraca difusão de conhecimento sobre estas questões de identidade, o que resulta em perguntas invasivas, comentários ofensivos e atitudes violentas.
Esta condição médica caracteriza-se pelo desconforto, sobretudo, mental com o aspeto geral, ou casos mais específicos, do próprio corpo.
“Infelizmente, sinto uma necessidade subconsciente de apagar algumas partes em mim, mais femininas” refere Xavier ao relembrar ocasiões em que o tratam com pronomes femininos – “infelizmente, um pouco por pressão social, sinto uma necessidade muito grande de só mostrar a parte mais masculina” continua.
Para o jovem de 24, a situação ideal passa por apresentar-se como pessoa transmasculina – no caso, um homem transgénero, fora do espetro binário – por sentir que a sua identidade não se adapta ao papel de género masculino ou feminino.
Para Tiago Lêdo, de 29 anos, a transição hormonal começou em fevereiro de 2020 e ainda que, para ele a conclusão do questionamento não lhe trouxesse mais dúvidas, chegara a hora de contar ao pai e à mãe, aos tios, à avó. O pai, surpreso, perguntou-lhe como era possível nunca se ter apercebido e a mãe preocupou-se com o que diria à avó – para Tiago, a resposta é simples “diz-lhe que é assim, o Tiago é o Tiago e acabou!” relembra.
Confessa que seria mais fácil de explicar a sua história se, antes de iniciar a transição, tivesse sido uma “mulher lésbica machona”, mas prefere não perder tempo com o que as pessoas pensam.
“Cada pessoa que me conhece desde que eu nasci, está neste momento, na sua cabeça, a construir a narrativa que quer.” -Tiago
Expressão de género e identidade de género são conceitos, frequentemente, trocados.
Em conjunto com o sexo e a atração amorosa, estes quatro termos são habitualmente ilustrados como a pessoa genderbread.

José Silva Brás/ SUI GENERIS
Guilherme confirma a importância de discutir estes conceitos e explicar às pessoas que “a expressão de género é só roupa, só a maquilhagem, é como a pessoa se apresenta ao mundo”, continua.
Tradicionalmente, os géneros masculino e feminino são percebidos e agem sobre padrões bastante distintos. O homem trabalha fora e sustenta a casa, a esposa cuida dos filhos, da casa e do marido. O homem veste calças, a mulher usa saia e pinta as unhas – estas características fazem parte dos padrões de género, regras de comportamento e expressão atribuídas e restritas a cada um dos géneros.
Atualmente, estes padrões têm sido transgredidos, muito por conta do movimento feminista, com o objetivo de questionar a estrutura social e permitir a sua adaptação à realidade.
Ainda assim, para a comunidade transexual estes padrões são impostos sob ameaça de discriminação. Como revela Guadalupe, se por um lado cumpre com os padrões mais femininos, como se sente melhor aliás, é acusada de contribuir para a “o que é tóxico na sociedade”, diz; se não o fizer, corre o risco de não ser percebida como mulher, expondo-se à discriminação por não se conformar com os padrões de uma identidade de género feminina.
Na opinião de Bernardo, expressão de género é um termo que nem devia existir, pelo simples facto de que “as pessoas têm o direito de se expressar como querem”, conclui. O jovem transgénero confessa já ter passado por uma fase de masculinidade tóxica por se sentir provocado pelos olhares e pelos comentários.

“Eu agora sou um rapaz, então eu tenho que me vestir desta forma, já não posso pintar as unhas, já não posso gostar disto, tenho que interagir desta forma. -Bernardo
De acordo com o Luís Pinheiro, psicólogo na associação Casa Qui, existem assimetrias de poder na sociedade que são replicadas dentro da comunidade LGBTQIA+. A invisibilidade das pessoas transgénero é alimentada, muitas vezes dentro da própria comunidade, pela discriminação em relação à sua masculinidade ou feminilidade – “muitas vezes, homens gays replicam nas pessoas transgénero, a discriminação que sofrem”, reflete.
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