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Eu sei o que sou: a discriminação LGBTI no espaço laboral e escolar

  • Foto do escritor: Luís Peixoto e Pedro Terrentaz
    Luís Peixoto e Pedro Terrentaz
  • 12 de mai. de 2021
  • 8 min de leitura

Atualizado: 14 de jun. de 2021


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Wednesday Holmes/ @hellomynameiswednesday


A igualdade e a não discriminação são princípios fundamentais dos direitos humanos. Mesmo havendo o direito de ser tratado de forma igualitária pela lei, independentemente da orientação sexual e identidade de género, a comunidade LGBTQ+ continua a sofrer de estigma social, exclusão e preconceito.


O testemunho de André Carvalho (20 anos) e Ana Lima (30 anos) é a prova de que a discriminação é uma realidade presente em vários locais como no trabalho, em casa, na escola e até em instituições de saúde.


André Carvalho é estudante universitário e desde cedo que trabalha no negócio dos pais. Numa conversa com o Sui Generis, o jovem transexual afirma que algumas situações o “deixaram um bocadinho de pé atrás''. Uma delas foi depois de ter mudado os documentos”. Um desses episódios contou com a presença da mãe, refere. Depois de entrar no café, o cliente dirige-se à mãe de André e afirma “diz aí à tua filha para me tirar um café”. A mãe de André acaba por responder ao cliente, referindo que não pode tratar o filho no género feminino porque ele quer ser um rapaz. “Ele quer ser um rapaz e eu quero ser rico”, diz André, usando as palavras que saíram da boca do cliente. O jovem acabou por abandonar o local de trabalho para não criar confusão. Habituado a ouvir esse tipo de comentários, o estudante universitário afirma que a situação não o afetou, mas deixou-o desconfortável.

Quanto tinha cerca de 12 anos, relembra que um outro cliente perguntou se era filho dos donos, questão à qual André responde afirmativamente. “Então vocês não eram duas meninas?”, questiona o cliente. O estudante ao responder “e somos”, o cliente fixa o olhar para o peito do André e diz: “Ah, pois és. Já reparei”. Foram “5 segundos que pareceram 3 horas”, refere o entrevistado. “Isto numa criança de 12 anos tem impacto. São daquelas coisas que ficas a olhar e pensas: isto acabou de acontecer”, acrescenta.

Além dos acontecimentos referidos, a discriminação sofrida no trabalho “aconteceu várias vezes”. André destaca igualmente uma situação que aconteceu num evento anual na cidade natal onde reside. Ao servir a mesa de um casal, o homem perguntou: “tu és um rapaz ou uma rapariga?”. Num primeiro momento, o André fingiu que não ouviu, mas o senhor voltou a insistir e decidiu responder “sou uma rapariga”. O estudante conta que ao ouvir a resposta, a esposa do senhor começa a festejar como se tivesse ganho uma aposta.

Independentemente das situações pelas quais passou, André continua a trabalhar no café dos pais e afirma não se sentir discriminado porque as pessoas “foram-se habituando e aceitando-o”. “Mais cedo ou mais tarde eu ia acabar por deixar de ser «a qualquer coisa» e passar a ser o André”, acrescenta. Às vezes ainda tem um idoso que lhe diz “estás tão crescida”, mas “nada que seja de propósito”.

A história de André é partilhada também por muitas outras pessoas queer. Ana Lima identifica-se como não-binárie do género fluído e ao longo do tempo também se deparou com vários episódios de discriminação. O mais comum é ouvir comentários sobre ser não-binárie. “Se tu podes ser qualquer género, que não é nem homem nem mulher, então eu também posso ser qualquer coisa”, refere Ana, afirmando que a história não fica por aqui. “Então eu identifico-me como um helicóptero” ou “então eu identifico-me como um elefante” ou “sou um cavalo” são expressões que estiveram presentes no quotidiano da artista. Para Ana estas situações são o “pico do respeito”, mas não acontecem apenas em locais em que a heterossexualidade e a cisnormatividade são o peso forte.

Ver os pronomes que usa a serem usados incorretamente ou não serem usados é outro dos problemas com que Ana tem de lidar. “Acontecem coisas do género, as pessoas errarem os meus pronomes, eu corrigir e dizerem «okay, tá» e continuam a errar. Para mim chegar ao ponto de corrigir alguém faz-me sentir mal e depois a pessoa ainda não pedir desculpa ou não justificar. Isso é muito comum”. Contudo, Ana entende que devido à natureza da língua portuguesa, por vezes, seja difícil utilizar os pronomes. Atualmente a viver em Berlim, revela que se torna um pouco mais fácil usar linguagem neutra. “Agora estou a viver em Berlim e na maior parte do tempo falo em inglês, então é possível haver linguagem não binária. Dentro de grupos queer, mesmo que não se refiram a mim, sou uma pessoa não binária do género fluído. Não sinto que tenha que forçar a não-binariedade.”

A trabalhar como maquilhadore, no passado Ana trabalhou numa “área extremamente masculina” como chefe de cozinha. Durante este período os episódios de discriminação eram recorrentes. “Eu lembro-me claramente de ter sido vítima de várias discriminações. Primeiro por ser viste sempre como mulher”, afirma. A discriminação salarial esteve também presente. Ana começou “por ganhar sempre entre um terço a metade dos ordenados das pessoas que faziam igual ou menos que eu, mas eram homens”, acrescenta.

Ao longo da conversa com o Sui Generis, Ana contou alguns episódios que a marcaram, entre eles, o de estar “sentade só e me virem dizer «porquê que estás sentada assim? Pareces um homem!»”. Ser assediade por quem a rodeava no espaço de trabalho era algo recorrente, o que levou Ana Lima a mudar a forma como se vestia. “Quanto mais assédio sofria, por estar num local de trabalho com um ambiente altamente masculino, mais género neutro se foi tornando a roupa que eu vestia para ir trabalhar. Acabei por me sentir confortável nesse estilo e a usar mais todos os dias, porque também não me sentia confortável com esse tipo de atenção, muito menos no local de trabalho”, afirma.

Quando questionadas sobre o que poderia ser feito para tornar os espaços laborais em locais mais seguros, os entrevistados têm opiniões diferentes. André afirma que “nada” precisa de mudar porque, uma vez que o negócio dos pais acaba por ser dele, tem o controlo de mudar o que se encontra mal. Já Ana refere que a Europa devia aproximar-se um pouco da realidade dos Estados Unidos, usando formações. “Acho que na Europa devíamos ter, como há nos Estados Unidos, formações de sensibilidade social, formações de assédio sexual, obrigatório”. Poder haver a liberdade, sem medo, de fazer queixa e “haver consequências reais quando há casos de racismo, sexismo, homofobia e discriminação no local de trabalho” são pontos essenciais para Ana. “Tal como nós temos formação de higienizarão no trabalho, para trabalhar numa cozinha, para trabalhar em qualquer ambiente com colegas de trabalho, devíamos ter formação do que é que constitui assédio moral, sexual e de todo o tipo de discriminação e devia haver infra-estruturas que forçassem consequências”, salienta.

Contudo, para ambes a discriminação e bullying começaram antes da entrada no mundo profissional. André revela ter sido vítima de discriminação por parte da direção da escola. Agora, “aos 14 anos já podes dizer como queres ser tratado e quais são os teus pronomes”, começou por dizer. No tempo em que estava na escola esta não era a realidade. Ainda assim, a profissional que o seguiu no Hospital de Magalhães Lemos, no Porto, escreveu um papel “muito informal” a pedir à direção para começar a tratá-lo no masculino e não pelo deadname. Ao entregar o papel, o diretor da escola negou a solicitação devido à ilegalidade que seria cometida.

Mais tarde, ao conseguir com que a escola aceitasse o novo nome, foi chamado à direção onde foi questionado sobre a casa de banho que queria frequentar. Sem ter iniciado o processo de transição, preferiu manter-se na casa de banho das raparigas. No 11º ano, realizou a mastectomia e aconteceu algo que o incomodou bastante - a direção não se preocupou mais em contactá-lo.

Durante uma reportagem em que participou, para a TVI, o estabelecimento de ensino foi questionado sobre o porquê de não ter sido oferecida uma casa de banho ou balneário diferentes a André. A instituição revela não estar a par da situação, mas segundo André “é impossível porque o subdiretor é meu vizinho e toda a gente em Murça sabe que eu fui operado”. O estudante afirma que a situação o afetou emocionalmente e que tentou compreender o lado da direção . “Apesar de estarem a ser transfóbicos comigo, vou dar o braço a torcer e vou pensar no que é que se podem apoiar se eu os acusar de que eles foram transfóbicos comigo”. A verdade é que não houve uma declaração oficial de André para a direção a informar sobre a operação.

O estudante mostra-se confuso em relação a toda a situação. “Até que ponto é que eu, já tendo os documentos mudados há 1 ano, tinha de chegar à direção e dizer-lhes que quero mudar de balneário ou que quero um balneário para mim ou quero mudar de casa de banho”, afirma. Apesar de tentar entender o outro lado, “o único argumento que eles me podiam apresentar era: tu não disseste nada”, complementa. O que para André, continua a não ser um argumento plausível já que “a minha mãe trabalha neste agrupamento e pediu baixa para ficar comigo em casa”.

Outro episódio que destacou foi com o cartão da escola, onde se dirigiu à secretária e perguntou se lhe iam trocar o cartão para o nome “André”, gratuitamente. O diretor, ao saber da situação, questionou o estudante. “Tu não pagaste 200€ para mudares os teus documentos? Se pagaste 200€ para mudar a tua documentação, custava-te assim tanto pagar 5€ para um novo cartão da escola?”. Mais tarde, o próprio Ministro da Educação contactou o diretor a respeito da situação do cartão e André acabou por receber um novo cartão.

Perante todos os episódios, sentiu que não era compreendido: “Senti durante muito tempo que eu era anormal”. Disse muitas vezes para si: “gostava de ter nascido normal” e que “Se nascesse normal se calhar tinha mais amigos”. Ao completar aos 16 anos, mudou a maneira de pensar: “se tu viveres a tua vida toda a dizer «eu sou um coitadinho e eu nasci assim», não vais chegar a sítio nenhum, nunca”. Sentiu a necessidade de provar a si mesmo que merece viver a vida que ambiciona.

Ana vive também essa realidade. Depois de vários anos a lutar contra a “normatividade”, as questões sobre ser normal continuam presentes. “Muitas vezes eu penso, «opá, se eu assumir o género feminino e pronto é mais fácil. E qual era o mal? Era mais fácil para toda a gente», afirma. “Depois penso que isso era voltar atrás com o esforço que já fiz até agora”. “Se eu fosse normal a minha vida era mais fácil e eu de facto tentei. O preço da energia que temos que investir a tentar encaixar num padrão de comportamento que vai contra a nossa natureza não vale a sensação de conforto social. No final do dia a pessoa com quem passamos mais tempo somos nós. O importante é ouvir a nossa voz e respeitar o que nós queremos”.

Ana e André não pediram ajuda nos períodos em que lidaram com discriminação. Ainda com dificuldades em falar destes episódios, Ana Lima que criou uma “nova personagem que responde torto ou que é agressiva ou que é intimidante” para se defender, refere que ficou em silêncio porque “a minha discriminação ou a discriminação que eu passo seja suficiente”. Ana afirma não querer tirar o lugar a quem possa estar a sofrer mais. “Acho que estou a tirar o lugar a outras pessoas que sofrem mais do que eu. Acho sempre que não estou a sofrer o suficiente para merecer ajuda”, acrescenta.

André refere que acabou por “aprender a responder”. Ao assumir a sua identidade “as pessoas começaram a perceber. A minha mãe também foi explicando quando lhe perguntavam”. Quando começou a impor-se aos colegas, clientes e funcionários da escola notou que o começaram a respeitar. Foi muito de “Não me vou calar agora ou se eu me calar agora nunca mais falo e fui sempre falando”. Confessa que recorre muito ao trocadilho: “Eu nunca gostei das medidas do cis-tema” para se empoderar e fazer-se ouvir.


 
 
 

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